O jogo do bicho nasceu em 3 de julho de 1892, idealizado pelo Barão João Batista Viana Drummond para atrair visitantes ao Jardim Zoológico de Vila Isabel, no então Distrito Federal brasileiro. Ao distribuir ingressos numerados associados a 25 animais, Drummond criou o primeiro sorteio que, rapidamente, transcendeu os limites do parque e ganhou as ruas do Rio de Janeiro.
Ao longo das décadas, mesmo diante de proibições legais iniciadas em 1895 e reforçadas pelo Decreto‑Lei n.º 9.215 de 1946, o jogo manteve‑se próspero por conta de redes informais de “banqueiros do bicho” e da confiança popular em frases como “vale o escrito”. Hoje, com a digitalização, muitos apostadores passaram a jogar no bicho online como forma prática de manter a tradição viva mesmo em processo de criminalização, sua prática sobreviveu graças à tolerância seletiva das autoridades e ao apelo cultural que se enraizou em diversas camadas sociais.
As curiosidades que cercam o jogo do bicho vão além da própria mecânica de aposta: envolve causos, lendas urbanas e expressões que hoje fazem parte do léxico nacional. Nesta seção introdutória, delineia‑se a evolução histórica e social desse fenômeno que, apesar de informal, exerce forte influência sobre o imaginário coletivo.
Histórias e lendas sobre o jogo do bicho
Uma das narrativas mais divulgadas refere‑se ao surgimento de bancas “fantasmas”, montadas em becos escuros, onde supostos apostadores ouviam apenas a contagem dos números sorteados sem ver qualquer bilhete. Tais relatos ajudaram a criar um clima de mistério, reforçado por histórias de “sorte milagrosa” em que apostas ínfimas viravam fortunas da noite para o dia.
Outra lenda remonta a supostos conluios entre bicheiros e juízes locais, em que resultados eram “vazados” ou manipulados por intermédio de propinas. Embora as provas sejam escassas, o folclore registrou casos de juízes que teriam recebido bilhetes premiados antes mesmo do sorteio oficial.
Há, ainda, o mito das “quadrilhas familiares” que controlariam territórios inteiros, como as famílias Drummond no Rio ou Noal em São Paulo, transformando a brincadeira lúdica em um negócio estruturado e violento, conforme investigado pela imprensa e historiadores do crime organizado.
Expressões populares que nasceram do Jogo do Bicho
A expressão “deu zebra” significa algo altamente improvável ou impossível e deriva da ausência da zebra na tabela dos 25 animais do jogo do bicho, posicionando‑a como símbolo do inusitado. No vocabulário futebolístico, a frase ganhou repercussão após torcedores do Vasco adotarem-na para celebrar resultados-surpresa ainda na década de 1920.
Outra expressão comum é “fazer vaquinha”, que originou‑se das apostas coletivas em que torcedores do Vasco, ao somar apostadores, “compravam” o bicho vencedor, o coelho, número 10, para premiar os jogadores em casos de vitórias apertadas. Esse hábito espalhou‑se para o cotidiano, passando a designar a rifa informal entre amigos para dividir despesas.
Frases como “cair na mão” (quando o número exato de um determinado bicho sai) e “entrar no páreo” (refletindo a disputa pelos primeiros grupos de apostas) também ingressaram no português falado, registradas em dicionários de gírias e em estudos sociolinguísticos sobre gírias urbanas.
A simbologia dos bichos e suas interpretações populares
No jogo criado pelo Barão de Drummond, além de funcionarem como códigos numéricos para apostas, os 25 animais carregam significados simbólicos que influenciam escolhas e superstições dos apostadores. Cada animal representa não só um número e um grupo, mas também uma série de atributos associados, como sorte, agilidade, esperteza ou força.
Por exemplo, o cachorro (n.º 5) é frequentemente relacionado à lealdade e proteção, sendo uma aposta comum quando alguém deseja segurança ou sente estar “protegido”. Já o macaco (n.º 17) simboliza esperteza e mutabilidade, sendo escolhido por aqueles que esperam resultados surpreendentes ou que apostam em jogadas de sorte inesperadas.
Curiosamente, alguns animais passaram a ter conotações místicas: a águia (n.º 1), por ser o primeiro da lista, é tida como um “abridor de caminhos” e costuma ser usada por apostadores iniciantes ou supersticiosos.
Sonhos, presságios e o jogo como sistema de adivinhação
Uma das práticas mais curiosas associadas ao jogo do bicho é a tradição de usar sonhos como forma de prever os números a serem apostados. Costume que, muito comum entre jogadores antigos, atribui significados oníricos a cada bicho, por exemplo, sonhar com um enterro pode indicar o urubu (n.º 21), enquanto sonhar com casamento pode remeter ao pavão (n.º 19).
Não raro, jogadores relatam sentir que o jogo “fala com eles” por meio de sinais da vida cotidiana. Uma criança que vê um porco na rua, um idoso que ouve repetidamente a palavra “gato”, ou mesmo um noticiário que menciona cavalos, tudo pode servir como gatilho para definir o bicho do dia.
A dimensão esotérica reforça o caráter cultural do jogo: não se trata apenas de apostar, mas de interpretar o mundo através de símbolos e eventos. Nessa perspectiva, o jogo do bicho funciona como um elo entre o acaso e o sentido, entre a sorte e a crença, tornando‑se uma forma de lidar com o imprevisível em um cotidiano marcado por incertezas.
Impacto na cultura popular
Em música, referências ao jogo do bicho aparecem no samba e no funk carioca, muitas vezes como metáforas de risco, sorte e destino incerto. Compositores como Cartola e Bezerra da Silva mencionaram o jogo em letras que falam de vida boêmia e malandragem.
No cinema e na televisão, personagens de vilões ou “gente do submundo” frequentemente guardam vínculos com o jogo, retratando‑o como meio de ascensão social à custa de métodos ilícitos. Produções nacionais exploraram esses arquétipos para debater corrupção e desigualdade.
No Carnaval, o financiamento informal de escolas de samba por bicheiros ficou famoso: o patrocínio, embora não oficializado, ajudou a custear fantasias e carros alegóricos, estreitando ainda mais a ligação entre a contravenção e a maior festa popular do país.
Conclusão
Embora o jogo do bicho seja formalmente ilegal no Brasil, suas raízes populares e seu papel social mantêm‑no vivo nas ruas, nas conversas e nas expressões do brasileiro. As curiosidades que revisitam lendas, casos pitorescos e gírias revelam um retrato multifacetado: mistura de folclore urbano, cultura de massa e dinâmica de poder.
As expressões advindas desse universo ilustram como a linguagem se enriquece a partir de práticas populares, incorporando metáforas que ultrapassam seu contexto original, marcando o modo de falar e pensar do brasileiro. Entender essa trajetória cultural é acompanhar a história do Brasil por meio de um jogo que, mesmo sem status oficial, continua a moldar símbolos, narrativas e comportamentos com seu apelo singular.